A Viatura - o dia em que minha vida mudou
Nesse episódio piloto, vamos conversar sobre a atuação do Conselho Tutelar e a Destituição do Poder Familiar. Ele faz parte de uma série de episódios sobre a vida da Natália, uma jovem mulher que foi acolhida quando criança e, na vida adulta, decidiu buscar por suas origens.
Transcrição
Vinheta de abertura:
Kyvia: Você está ouvindo Soa Familiar? Um podcast da rede Anthera. Uma rede internacional de pesquisas sobre família e parentesco. Nesta série de episódios te convidamos a conhecer a história de Natália. Vamos falar sobre uma série de acontecimentos que a levaram a ser acolhida junto de seus três irmãos no início dos anos 90. Essa é uma história sobre a sua vida, das suas muitas famílias, e da busca por sua origem.
Eu sou Milena
Eu sou Kyvia
Juntas, vamos conversar com você nessa temporada.
Bloco 1
Milena: Natália foi separada de sua família ainda na infância. Ela cresceu em um bairro periférico da cidade de porto alegre, na zona sul
Voz de Natália: Eu sou a Natália! Me identifico como preta, cis, e lésbica. Sou mãe da Ciara que tem 10 anos. Eu cresci na Pedreira. Cresci como muitas crianças naquela época. Brincando na rua, cuidando dos meus irmãos porque a mãe trabalhava fora. Ela era doméstica, num desses bairros mais chiques, sabe? Aí eu ia pra escola, cuidava dos meus irmãos, e quando precisava a gente ia pra casa da tia Regina.
Kyvia: Os irmãos de Natália se chamam David, Guilherme e Lucas. Natália, desde cedo, aprendeu com a mãe, Rose, a cuidar da casa e dos irmãos. Apesar das dificuldades, ela frequentava a escola, o centro social do bairro e adorava brincar na rua com os irmãos e amigos.
Milena: Rose, a mãe de Natália, sempre trabalhou muito, desde nova. Sua mãe morreu muito jovem, e ela nunca conheceu seu pai, tendo que aprender a se virar sozinha por conta própria. Em seus relacionamentos, também não teve sorte. No primeiro, sofreu violências físicas e psicológicas até se separar do marido, e no segundo, ficou viúva. Não era fácil cuidar de 4 filhos sozinha, Regina, uma vizinha, era a única pessoa que ajudava quando podia nos cuidados das crianças.
Rose estava na fila para conseguir uma creche para Lucas, mas ainda aguardava. Ela não tinha parentes próximos e sem o apoio dos pais das crianças, seguia lutando para manter a sanidade diante das dificuldades, e para manter os filhos bem. Mas com o salário que recebia, os custos com deslocamento e alimentação, a grana era curta para sustentar sozinha uma família de cinco.
Kyvia: Tudo mudou na vida da família de Natália quando ela tinha dez anos de idade. Um dia, ao voltar da escola, ela encontrou uma viatura de polícia estacionada em frente à sua casa.
Voz de Natália: Eu virei a esquina e vi aquele carro de polícia. Me assustei. Senti o coração na boca, minhas pernas tremiam mas fui andando até lá. Quando me viram os vizinhos apontaram e estavam todos olhando pra mim.
Milena: Foi uma assistente social quem contou à Natália que ela e os irmãos seriam levados para um abrigo. Uma pessoa havia feito uma denúncia ao Conselho Tutelar desencadeando em uma avaliação da situação em que se encontrava a sua família. A justificativa para a medida de acolhimento foi classificada como uma acusação de ‘negligência’ por parte de Rose, que deixava os filhos sozinhos em casa, sem cuidados de um adulto responsável, além de deixá-los filhos em condições de má nutrição e moradia precária. Nas pesquisas sobre acolhimento negligência é um termo que aparece bastante. Claudia Fonseca e Andrea Cardarello em 1999, quando estavam estudando as mudanças do antigo código de menor para o ECA mostraram que o que antes parecia cair na categoria de pobreza ou falta de recursos, depois do ECA virou negligência. Aqui, a gente se pergunta sobre os motivos que justificaram o acolhimento de Natália e dos irmãos. Sim, ela ficava sozinha em casa auxiliando nos cuidados, e sua família passava por dificuldades. Mas isso seria necessariamente uma forma de negligência?
E será que Rose, nesse caso, não estava precisando de proteção, tanto quanto os seus filhos?
Voz de Natália: “A minha família era muito pobre... Minha mãe vivia com muitos problemas, sempre tentando dar conta de tudo, e eu nunca conheci meu pai. A gente passava sim dificuldades, mas uma coisa que nunca faltou foi amor de família. Até aquele dia que a viatura foi buscar a gente. Foi tudo tão assustador, porque eles não explicaram muito bem para a gente o que é que tava acontecendo e a gente também não queria ficar longe da nossa mãe. Só muitos anos depois, eu soube que eles também não explicaram muito bem pra minha mãe pra onde estavam nos levando, e que ela teve muita dificuldade de nos reencontrar”.
Kyvia: Natália se lembra que, quando era pequena, ouvia os adultos dizerem que, se as crianças não se comportassem, iriam "chamar o Conselho Tutelar". Ela sempre teve medo, mas nunca imaginou que isso pudesse realmente acontecer com ela.
Bloco II
Milena: Mas como é que acontecem essas “denúncias ao Conselho Tutelar?” O que é esse órgão e como ele atua? Para entendermos melhor, convidamos para o episódio de hoje a Fernanda Tuna. A Fernanda é adotiva e trabalha como conselheira tutelar em Nova Lima, Minas Gerais. Obrigada pelo questionamento, Milena. É um prazer participar desse podcast. É muito triste perceber que a história da Natália é, infelizmente, o retrato do contexto de tantas medidas de abrigamento. Sou filha adotiva e sinto na pele as dores e atravessamentos da separação da família biológica. Respondendo a sua pergunta, é importante, primeiramente, deixar claro que o Conselho Tutelar deve atuar na proteção dos direitos das crianças e adolescentes, e não como executor. Ou seja, o Conselho Tutelar, idealmente, solicita e requisita serviços relacionados aos direitos das crianças e adolescentes para que esses sejam efetivados. As principais comunicações recebidas pelo Conselho Tutelar são variadas, indo desde denúncias graves de violações de direitos, por exemplo, situações de violência sexual, até pedidos de auxílio de famílias para conseguir vagas em creche. Conforme previsto no ECA, a medida de abrigamento deve ser da exceção da exceção e decidida pelo judiciário, ou seja, deve haver o esgotamento de todas as possibilidades.
No caso da Natália, temos que pensar do seguinte, como a sua mãe foi fortalecida pela rede de proteção? As crianças tinham vaga em tempo integral na creche ou na escola? A família recebia benefícios da proteção básica, por exemplo, cestas de alimentos, de legumes? Tinha algum auxílio ou oferta para participar de atividades culturais e de lazer? O pai ou o genitor da Natália foi acionado? Ele participava da vida ou das despesas da Natália e de seus irmãos de alguma forma? Ou seja, a obrigação no cuidado com crianças e adolescentes, conforme previsto na lei, não é somente do cuidado imediato, mas de toda a sociedade. Como uma mãe solo que precisa trabalhar fora para sustentar seus filhos e não possui rede de apoio, exerce a sua maternidade? Como o Estado deve acompanhá-la nessa situação de vulnerabilidade, pois ser mãe solo é uma situação muito sensível para que os direitos de seus filhos sejam efetivados? O Conselho Tutelar atua em contato constante com todos os órgãos da rede de proteção das crianças e dos adolescentes, ou seja, saúde, educação, segurança, assistência social, para que eles e suas famílias sejam tratados como está previsto no ECA. Uma medida de acolhimento, por exemplo, pelo Conselho Tutelar só acontece em casos gravíssimos em situações excepcionais de risco iminente e sem possibilidade de contato com a família extensa ou outro cuidador vinculado com a criança ou adolescente. No caso da Natália, por exemplo, o Conselho Tutelar, mediante a denúncia recebida, poderia ter encaminhado a sua mãe para o acompanhamento do núcleo familiar para os serviços da proteção básica, dependendo da situação, caso ou também poderia encaminhar a família para os serviços de saúde.
É um trabalho conjunto que deve ter como principal foco a manutenção dos vínculos familiares e comunitários. Suponhamos que a mãe da Natália, por exemplo, não aderisse aos serviços propostos e fosse, de alguma outra forma, negligente com seus filhos, comprovadamente, utilizando o castigo físico constante, por exemplo. Mesmo nesse caso, antes da medida de acolhimento, seria possível trabalhar não somente a sua mãe, mas também entrar em contato com outros membros da família e da convivência da Natália e dos seus irmãos para verificar outras possibilidades. Como disse, a medida de abrigamento é a última instância e uma rede de proteção fortalecida terá o mínimo de crianças e adolescentes em situação de abrigamento. É importante que tenhamos em mente que um serviço de acolhimento cheio, com muitas crianças e adolescentes em situação de abrigamento, reflete, principalmente, a negligência estatal histórica com muitas famílias.
Milena: Quando a Fernanda comenta que o conselho não é executor, mas deve atuar na proteção dos direitos das crianças e adolescentes ela mostra a amplitude das demandas que os conselheiros recebem e acionam. Atuando na garantia de direitos em situações graves até a garantia de direitos básicos como uma vaga em uma creche, por exemplo. Além disso, quando Fernanda afirma que abrigos cheios são um sinal de falha do estado ela rompe com uma lógica simplista que perdurou durante muito tempo de que o abrigamento seria para o melhor interesse da criança.
Natália [fictícia]: Por muito tempo, eu senti raiva da minha mãe. Eu achei que ela tinha abandonado eu e meus irmãos, e, quando fui crescendo, também acabei achando que ela tinha sido negligente de alguma forma com a gente. Pelas coisas que eu ouvia, e que acabei aprendendo. Eu me senti muito rejeitada nessa época, e a vida no abrigo não era nada fácil. Mas eu nunca tinha parado pra pensar no abandono e rejeição que a minha mãe também tinha sofrido. Sem uma rede de apoio pra cuidar de 4 filhos, como a que eu tive, quando a Ciara nasceu, pra me ajudar com a minha filha. Minha mãe tava sempre correndo atrás dos nossos direitos, mas mesmo se esforçando ao máximo, infelizmente a gente sabe, que nesse país de tanta desigualdade, não importa só o esforço. Porque vai muito além disso.
Kyvia: Natália nos conta que, ao refletir e revisitar o seu passado durante a vida adulta, ela percebeu que mudou muito em relação ao que pensava antes. Durante essa busca, Natália encontrou o Artigo 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que afirma que a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a suspensão do poder familiar. O artigo também reforça que as famílias em tais condições devem ser inseridas
obrigatoriamente em programas de assistência social, garantindo o apoio necessário para que possam cuidar de seus filhos.
Milena: Pesquisadoras e associações têm chamado casos como os de Natália de retirada compulsória de filhos. Esses movimentos destacam a urgência de nos atentarmos aos inúmeros casos que ocorrem em todo o Brasil, onde crianças e bebês são retirados de suas famílias, muitas vezes logo após o nascimento, diretamente das maternidades. Esse fenômeno é tão alarmante que tem sido denominado como “sequestro de bebês”. Para nos ajudar a aprofundar nossa compreensão sobre esse tema, convidamos Janaína Gomes, pesquisadora em Direitos Humanos e pós-doutoranda em Antropologia Social pela Rede Anthera. A Janaína vai nos explicar o que é a retirada compulsória, como ela ocorre, e as implicações que gera nas famílias afetadas.
Janaína: Oi, pessoal, tudo bem? Obrigada pelo convite para estar aqui com vocês hoje. Meu nome é Janaína Gomes, sou pesquisadora em Direitos Humanos. Atualmente, sou pós-doutoranda em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a UFRGS. Queria compartilhar com vocês um pouquinho sobre a minha pesquisa, a minha trajetória de pesquisa com destituição do poder familiar, e contar para vocês um pouquinho o que é a destituição, quem são as pessoas que são atingidas por ela. Trazer para vocês alguns elementos que acho que podem ser interessantes para a gente pensar a partir do que a gente conheceu nesse episódio do podcast hoje. Em primeiro lugar, a destituição do poder familiar era uma ação que visa a perda do poder familiar do pai ou mãe ou cuidador, que preencher alguns requisitos previstos em lei. E essa lei é o Código Civil. Então, o Código Civil fala, nessa perda por ato judicial do poder familiar, as pessoas que castigarem imoderadamente o filho, deixar o filho em abandono, praticados contrários à moral e aos bons costumes. Então, tem alguns requisitos na lei que preveem a retirada das crianças para sua proteção. Então, a gente está pensando em risco, a gente está pensando em crianças que estão em risco no local onde elas estão. Mas quando a gente pensa em, por exemplo, praticar atos contrários à moral e aos bons costumes, e quando a gente vê os processos, a gente se dá conta que tem muito espaço para interpretação. Então, quando a gente pensa em atos contrários à moral e aos bons costumes, não necessariamente a gente está pensando numa violência, num abuso contra essas crianças. Nos casos em concreto, o que a gente acaba vendo, como a gente viu no caso aqui do podcast, a gente vê situações de pobreza, de vulnerabilidade, de risco, em que toda uma família está sujeita, mas que colocam a lente do Estado, colocam o foco do Estado nessa família, nessa mãe. E acaba-se optando pela retirada da criança para sua proteção, entre aspas, porque a gente está falando de um contexto de acolhimento, um contexto de afastamento da sua família de origem, que é uma garantia prevista na nossa legislação, o direito da convença familiar e comunitária com a sua família de origem. Então, a gente vê essa retirada, vê esse acolhimento sendo praticado em nome do bem-estar, em nome do cuidado com essa criança, que é como eu nomeio isso nas minhas pesquisas, mas, quando a gente vai ver na prática, a gente está falando de situações que não deveriam dar ensejo a retirada dessas crianças, por força do próprio ECA, que prevê que as crianças não devem ser retiradas das suas famílias em razão de pobreza. Então, quando a gente olha para esses casos, a gente está olhando para situações muito complexas, de muito limite, de omissões do Estado, e que, muitas vezes, acabam por responsabilizar as mães, as famílias, pela precariedade da vida na qual elas estão inseridas, mas que não têm acesso a nenhum direito. Não têm direito à moradia, à saúde, à educação.
Inclusive, a gente está falando de violências, violações a direitos transgeracionais. Quando a gente olha esses casos, quando eu tenho olhado esses casos no meu processo de pesquisa, a gente vai vendo que essas famílias, muitas delas, as mães, as avós, já estavam em situação de rua. Estiveram em situação de precariedade, de habitação, sem acesso aos seus direitos. São mulheres jovens que têm filhos e que não conseguem dar conta do cuidado com essas crianças, não porque elas não querem, não porque elas sejam violentas, porque elas pratiquem maus tratos com essas crianças. A gente está falando de situações limite em que mulheres não conseguem exercer a maternidade por falta de condições sociais, por falta de condições de acessos que poderiam ser sanados com assistência social, com políticas públicas. Então, quando a gente olha no país hoje a questão da destituição do poder familiar, a gente pode dizer que ela atinge prioritariamente as mulheres em situação de rua, em moradia precária, mulheres usuárias de drogas, mulheres negras, mulheres jovens, mulheres pobres em geral, mulheres não heteronormativas, e que têm as suas maternidades julgadas, têm as suas maternidades decididas pelo Estado. Então, a gente tem várias pesquisas contando um pouquinho sobre isso. Queria mencionar para vocês o Diagnóstico Nacional da Primeira Infância, que foi uma pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça, que traz ali nos seus dados uma coisa que é bem interessante de a gente pensar também, que é o aspecto da negligência. Como é que está sendo nomeada a retirada desses filhos? Qual é o motivo principal dos acolhimentos dessas crianças? Quando a gente olha esses dados do diagnóstico, mas também outros dados já produzidos em diversas outras pesquisas, a gente vê que a negligência é o motivo da maior parte, de mais da metade dos acolhimentos no país. Mas o que é a negligência? Será que a negligência é não ter acesso à escola, não ter acesso à creche, é ficar sozinha em casa quando a mãe está trabalhando, ou a negligência é ficar na rua, a negligência é ficar sob cuidados de um terceiro, de uma tia, de um parente, de um vizinho? A gente vê um conjunto de situações que têm sido chamadas de negligência, mas que, quando a gente para para olhar para elas, como já falei aqui no comecinho, a gente está falando de situações de pobreza, de falta de assistência, de falta de cuidado, de falta de saúde, de falta de políticas públicas direcionadas a essas famílias. Então, quando a gente pensa nessa cena da destituição do poder familiar, o que eu proponho aqui para a gente pensar é que a gente amplie o nosso olhar, que a gente não olhe só para aquela mãe que não está conseguindo cuidar dos seus filhos do jeito que se considera ideal, e quem é a pessoa que pode dizer qual é o melhor cuidado? Quem tem a régua para medir qual é o cuidado ideal? Mas, quando a gente olha para essa situação e reduz esse olhar para a mãe, a mãe não está levando a criança na escola, a mãe não está dando comida suficiente para as crianças, a mãe não está ficando em casa para cuidar dessas crianças, a gente está vendo, de uma maneira muito restrita, um problema que é muito mais amplo, que tem que envolver os gestores de políticas públicas, na saúde, na assistência social, na moradia, a gente tem que envolver a linha de frente das políticas de saúde e assistência social, a gente tem que pensar no Poder Judiciário, que está olhando só para essas famílias com essas crianças e não está olhando para esse entorno, para essa precariedade das políticas públicas, para essa pobreza na qual vive grande parte da nossa população. Porque, se a gente fosse retirar os filhos de todas as pessoas que estão passando por dificuldade, que não têm alimento suficiente em suas casas, que moram em moradias precárias no Brasil, a gente não vai dar conta, enquanto sistema, a gente não vai conseguir cuidar de todas as crianças desse jeito, e a gente nem deve fazer isso, porque o ECA prevê o direito ao convência familiar e comunitário dessas crianças, prevê que as medidas de proteção às crianças são de orientação, de apoio, de matrícula e frequência obrigatória no estabelecimento de ensino, inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de apoio, de proteção e promoção da família da criança ou adolescente, requisição de tratamentos médicos, inclusão em programas de auxílio, por exemplo, a questão de drogadição. O acolhimento institucional e a colocação em família substituta são as últimas medidas, são as mais excepcionais. Mas, infelizmente, o que a gente tem visto na prática, o que a gente tem visto a partir dos processos judiciais, é que essas escolhas têm sido feitas, às vezes, em primeiro lugar, porque elas são fáceis, elas são rápidas, elas resolvem, entre aspas, rapidamente um problema. Mas não é assim que deveria ser feito, porque a gente tem uma legislação que fala sobre outras formas de apoio a essas famílias. Então, o convite aqui, a partir dessa história que a gente ouviu hoje, desse caso que a gente pôde compartilhar, é ver como a gente precisa desestigmatizar essas famílias, a gente precisa ver que essas mulheres, essas famílias, muitas delas com o apoio do Estado, com condições, poderiam exercer a maternidade delas. A gente está falando também, a gente fala muito dos direitos sexuais e reprodutivos, os direitos das mulheres de escolherem sobre as suas maternidades, de poderem fazer o aborto legal, mas a gente tem que incluir nesse cenário a questão da justiça reprodutiva, a questão de que as mulheres que tenham seus filhos tenham garantido o direito de criá-los, de materná-los, de tê-los em segurança, sem violência do Estado, com o apoio do Estado para o exercício dessa maternidade. Então, esses aqui são um pouco dos delineamentos do que a gente tem pensado em diversas pesquisas que têm sido realizadas há décadas, gente, sobre a destituição do poder familiar e que têm mostrado para a gente que é um público específico que tem os seus filhos retirados e que esse público específico não tem sido cuidado, não tem sido apoiado e muitas vezes está numa espiral de retiradas contínuas dos seus filhos sem que o Estado cuide dessas pessoas, sem que ele garanta a permanência conjunta das famílias, sem que ele garanta que todas as medidas foram feitas e que apenas excepcionalmente essas crianças vão ser retiradas das suas famílias.
Sobre isso, muitos têm pensado, inclusive sobre a colocação dessas crianças em famílias substitutas, em adoções que nem sempre dão certo, e mesmo quando elas dão certo, acho que a gente tem que pensar muito sobre isso. Retirar as crianças de uma família e colocar em outra, é a solução que a gente quer? É uma política pública que a gente quer? Porque ela não está prevista no ECA como política pública, ela está prevista como medida excepcional. O correto, o ideal, segundo a legislação, é a gente cuidar dessas famílias, cuidar dessas crianças e garantir que nenhuma retirada seja feita em razão da pobreza. Bom, é isso que eu queria trazer para vocês, espero que a gente possa continuar trocando e vou também trazer aqui algumas sugestões para ficarem no podcast ao final, de textos, de livros, que podem ajudar vocês a conhecer um pouquinho mais sobre esse tema.
O que é a retirada compulsória
Milena: Isso tudo faz a gente pensar que a medida de acolhimento para crianças e adolescentes pode acontecer sem que haja necessariamente uma comprovação de violação de direitos por parte de seus cuidadores e a se perguntar por que isso acontece.
Kyvia: É o debate do melhor interesse da criança. Muitas violações de direitos podem ser perpetradas tendo em mente esse princípio. E é sempre bom a gente lembrar que o modo como classificamos essas situações, como “abandono e negligência” pode ter implicações. Isso está também muito relacionado ao estigma e preconceito às famílias pobres, influenciando a prática profissional e a forma como esses casos são abordados, assim como as respostas institucionais que são formuladas. Além disso tudo, é preciso sempre lembrar que a classificação do caso marca sobretudo as crianças e adolescentes envolvidos.
Bloco III
Mudando de percepção sobre a família de origem
Milena: Conversamos com Natália sobre como foi para ela começar a explorar esses conteúdos e entender sobre a sua história de origem.
Natália: A gente tinha problemas em casa, sabe? Como todo mundo tem. E eu sei que nem todo mundo teve uma história como a que eu tive. Conheci pessoas no abrigo, amigos, que sofreram muitas violências graves na família de origem, e que quando saíram com 18, acabaram revisitando essas mesmas violências da infância.
Também vi muitos amigos sendo expulsos por serem gays, lésbicas, trans, e que nunca quiseram voltar a ter contato com a família, como um meio de se proteger mesmo. Mas a minha história não foi essa. E ter sido retirada da minha família quando criança traz marcas comigo que carrego até hoje. No abrigo, eu tive educadores que eu nunca vou esquecer, que viraram minha família. Eu aprendi muito lá sobre os meus direitos, sobre quem eu sou. Mas hoje entendo que minha mãe nunca foi negligente com a gente. Se o ECA diz que é dever da família, da sociedade e do Estado proteger as crianças, o que eu sempre me pergunto é porque ninguém nos protegeu, e no fim das contas, a culpa toda recaiu sobre a minha mãe. Se tivessem protegido ela, também tinham protegido a gente. Mas pelo jeito, ninguém pensou nisso. Ninguém pensou que ela simplesmente não tinha condições pra colocar meu irmão numa creche ou pra pagar alguém para cuidar da gente enquanto ela trabalhava fora. Eu considero que no dia em que aquela viatura nos buscou, os nosso direitos foram negados. E é por isso que eu sempre repito, que a minha mãe era uma mulher preta, linda e generosa, e que foi silenciada, como muitas outras famílias seguem sendo, ainda hoje, sobretudo famílias negras, indígenas, e que são constantemente vulnerabilizadas. Hoje eu sei que eu fui retirada da minha família apenas por viver em uma situação de pobreza. E eu não acho que isso deveria ter acontecido comigo. E sinceramente, eu acho que isso não deveria acontecer com mais ninguém.
Considerações finais
Kyvia: A história da Natália nos leva a refletir sobre várias questões importantes, como, por exemplo: Qual o papel do Estado na proteção de crianças e de adolescentes? Considerando a responsabilidade do “Estado, da família e da sociedade”, como podemos assegurar que os direitos das crianças e adolescentes sejam efetivamente protegidos? Em que medida o Estado tem cumprido seu papel de garantidor desses direitos?
Milena: A gente pode se perguntar também de quem foi a negligência e o abandono no caso de Natália? Quem realmente violou os direitos das crianças e adolescentes? A gente sempre tem a impressão de que estamos responsabilizando individualmente os pais, e especialmente as mães. Mas nesse caso, fica claro que faltam políticas sociais adequadas, que deveriam cumprir as premissas estabelecidas ECA. E são coisas simples, como uma creche, mesmo!
Kyvia: Isso, Milena. Quando a gente olha para as famílias em pobreza com um check list, só procurando o que está faltando… Esse olhar, quase criminalizador vai afetar a vida de muitas pessoas. A gente se pergunta em que medida o Estado atua também como agente de violência ao invés de proteção?
Milena: Exatamente. Não estamos dizendo que as denúncias não são importantes. Elas salvam vidas. Mas há nesses mecanismos, uma estrutura e ideal de família que ao invés de proteger vai produzir mais desigualdades.
Kyvia: É exatamente o que vimos na história da Natália. Nos próximos episódios vamos continuar acompanhando a sua trajetória. Do acolhimento até a busca de origens.
Milena: A partir dessas experiências, vamos pensar em como construir alternativas mais justas e inclusivas. Como podemos pensar em novas políticas, ações e iniciativas, de forma a garantir direitos para as famílias, ao invés de potencializar a exclusão social e discriminação?
Kyvia: Você encontra mais informações sobre esse podcast e a Rede Anthera no nosso site redeanthera.com, Lá estão a transcrição desse episódio e uma série de materiais para aprofundar as discussões que tocamos aqui.
Kyvia: Você ouviu Soa familiar? Esse podcast foi idealizado pela equipe da Rede Anthera. O roteiro e edição é de Suliane Cardoso e Débora Allebrandt. Contribuíram para esse episódio Fernanda Tuna e Janaína Gomes.
As âncoras são Milena Weber e Kyvia Pereira. Tear interpreta Natália.
A música é Lágrimas Coloridas, do Álbum Sereno Canto, na voz de Raul Jung; Thiago Ramil e Kátia Ramil;